
O Homem que Roubava Vinhos - por Elmo Dias
Não eram nem onze horas da manhã quando colocaram o sujeito sentado na minha frente.
Bem apessoado, barba recém feita, perfume masculino daqueles antigos rescendendo na sala.
Normalmente de cara já sei que tipo de vagabundo é, mas não consegui sacar aquele sujeito no primeiro momento.
Me trouxeram o auto de prisão em flagrante. Li a descrição do crime, achei até engraçado.
- Ladrão de vinhos, então? – olhei nos olhos do homem, olhos azuis num rosto moreno.
Muito incomodado, tremia um pouco. Não falou nada.
- Olha, faz tempo que eu sou delegado, mas confesso que não tinha ainda prendido um cara especializado em vinhos. Tem os caras do rolex, tem os caras que roubam notebook e depois pedem resgate, tem até os caras especializados em Louis Vuitton, mas vinhos...
O escrivão entrou na sala, sentou no computador pra começar a digitar o depoimento.
- Qual a idade dele? – perguntei pro escrivão.
- Quarenta e dois anos, doutor.
- Natural de Curitiba mesmo?
- Não, aqui no RG diz que nasceu em Itaqui, Rio Grande do Sul.
Peguei a ficha de novo. Mordecai.
Nome de crente.- Me conta lá, Mordecai. Como te pegaram?
Me olhou angustiado, contraiu os músculos da face pra falar. Recuou, engolindo o que ia dizer.
- Olha, se você não falar nada vai piorar as coisas.
Não era bandido. Bandido eu conheço, tem os olhos de cachorro traiçoeiro. Puxa teu saco ou se humilha, ou então tá acostumado com a coisa toda, e daí só espera a hora de assinar o depoimento.
- Não falo mais isso pra ninguém, até porque o cinema já tratou de deixar isso dito, mas você tem direito a um advogado. Quer fazer uma ligação?
Testa franzida, espremeu a boca com força e disse que não.
- O que é um “mutôn” ? – perguntei, lendo o B.O.
Seu rosto tomou um pouco mais de cor.
- Um vinho francês, delegado.
Me tratava pela função. Se dava ao respeito.
- Samuca, liga pro Demétrio. – falei pro escrivão – pergunta se ele pode vir aqui.
O escrivão saiu, foi ligar pro Demétrio, um colega da escola de polícia, bebedor de vinho, gastador, metido a grã fino.
Uns vinte minutos depois, Demétrio entrou pela porta. Paletó xadrez, gravata borboleta, cachimbo na mão.
- Demétrio, apaga esse pito que vai ficar todo mundo fedendo aqui!
Levantei e dei um abraço nele.
Pegou o cachimbo de madeira escura e bateu no cinzeiro.
- Virmond, esse caso é pra mim mesmo... - falou dando uma risada marota.
Sentou na cadeira que ficava na ponta da mesa, pegou o auto de prisão, puxou os óculos pra cima do nariz e começou a ler com os olhos brilhando, instigado.
- O que você fez com essas garrafas, seu Mordecai?
O homem devolveu a pergunta baixinho.
- Qual delas ?
- Esse Ornellaia 2004, por exemplo?
- Ah, delegado. Tá guardado, né?
O Demétrio anotou alguma coisa, concentrado.
- Ô indivíduo, vc trata o doutor com respeito, viu, já acabo com a moleza que tô te dando... – dei uma engrossada.
- Deixa, Virmond – o Demétrio pegou no meu braço – tá tranquilo.
- E essa caixa de Vega Sicília Valbueña 2002?
- Também adeguei. É tudo Magnum.
Eu estava boiando. Mas o Demétrio pareceu ter um pequeno chilique.
- Magnum? Rapaz! – ele pareceu animado. Anotou mais alguma coisa. – Samuca, quando prenderam o Mordecai aqui, ele tinha documentos?
- Tinha sim, doutor.
- Tinha passaporte?
- Humm... parece que sim.
- Veja lá e me traz, se tiver.
O escrivão saiu da sala.
- Que porra é essa, Demétrio? Pode ir me falando! – intimei.
- Calma, Virmond. Tá tudo bem, deixa comigo.
Fiquei olhando a bigodeira branca do Demétrio, cobrindo o lábio superior, descendo pelas laterais da boca. Parecia o Rui Barbosa.
- Tá aqui – o Samuca voltou, deu o passaporte pro Demétrio.
Ele ficou uns segundos folhando o documento.
- Espanha, Itália, França, Portugal... um cara velho-mundista, certo?
- É a sequência natural das coisas, não doutor?
Doutor. O meliante já estava pegando intimidade, perdendo a formalidade.
Demétrio não se abalou.
- É, pode ser. Agora, este Mouton aqui, 2000, Jeroboam... é picardia sua, não?
Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra. Picardia. Fiquei até me perguntando se tinha ouvido.
- Não, doutor, não é não...
- E aonde diacho você ia achar isso?
- Ah, doutor, essa foi realmente difícil. Um industrial argentino, casa em Punta.
- Porra, você tá precisando é da Interpol! O que a gente vai fazer com um cara desse naipe, Virmond?
– Demétrio me olhou, claramente ainda se divertindo com a coisa.
- Sei lá, Demétrio. Quanto valem esses mutôn, nêga cecília, esses nomes todos aí?
O tal Mordecai deu risada.
- Tá rindo do que, vagabundo? – levei a mão no revólver e levantei.
- Calma, Virmond. O cara é da leve. – Demétrio interviu, rindo mais que o ladrão.
Mordecai tinha parado de rir imediatamente, mas nem me olhava mais. O negócio dele era com o Demétrio já tinham se afinado.
- Agora, uma coisa tá me intrigando – Demétrio falou – aqui tá dizendo que te pegaram roubando aqui no Brasil, num supermercado... é isso mesmo?
O larápio enrubesceu. Baixou a cabeça.
- Foi sim senhor, doutor Demétrio.
- Mas o que tu tava roubando aqui, infeliz, e em supermercado?
Silêncio total.
- Fala, Mordecai – Demétrio fez uma inesperada cara de esperançoso.
- Não me lembro, doutor.
- Samuca, me traz aquele pacote que está com as coisas dele – Demétrio falou pro escrivão.
Voltou com uma sacola de supermercado, esticada, uma garrafa dentro.
Demétrio colocou em cima da mesa, enfiou a mão dentro. Tirou uma garrafa bonita, um rótulo com um rabo de pavão, um desenho meio dourado.
- Cara, tu é um doente mesmo... – Demétrio ficou meio indignado – o que você vai fazer com esse Salton Talento? Guarda? Degustação às cegas? – Demétrio caçoava, tripudiava a olhos vistos...
- Boeuf bourguignone...
Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)
- Não, aqui no RG diz que nasceu em Itaqui, Rio Grande do Sul.
Peguei a ficha de novo. Mordecai.
Nome de crente.- Me conta lá, Mordecai. Como te pegaram?
Me olhou angustiado, contraiu os músculos da face pra falar. Recuou, engolindo o que ia dizer.
- Olha, se você não falar nada vai piorar as coisas.
Não era bandido. Bandido eu conheço, tem os olhos de cachorro traiçoeiro. Puxa teu saco ou se humilha, ou então tá acostumado com a coisa toda, e daí só espera a hora de assinar o depoimento.
- Não falo mais isso pra ninguém, até porque o cinema já tratou de deixar isso dito, mas você tem direito a um advogado. Quer fazer uma ligação?
Testa franzida, espremeu a boca com força e disse que não.
- O que é um “mutôn” ? – perguntei, lendo o B.O.
Seu rosto tomou um pouco mais de cor.
- Um vinho francês, delegado.
Me tratava pela função. Se dava ao respeito.
- Samuca, liga pro Demétrio. – falei pro escrivão – pergunta se ele pode vir aqui.
O escrivão saiu, foi ligar pro Demétrio, um colega da escola de polícia, bebedor de vinho, gastador, metido a grã fino.
Uns vinte minutos depois, Demétrio entrou pela porta. Paletó xadrez, gravata borboleta, cachimbo na mão.
- Demétrio, apaga esse pito que vai ficar todo mundo fedendo aqui!
Levantei e dei um abraço nele.
Pegou o cachimbo de madeira escura e bateu no cinzeiro.
- Virmond, esse caso é pra mim mesmo... - falou dando uma risada marota.
Sentou na cadeira que ficava na ponta da mesa, pegou o auto de prisão, puxou os óculos pra cima do nariz e começou a ler com os olhos brilhando, instigado.
- O que você fez com essas garrafas, seu Mordecai?
O homem devolveu a pergunta baixinho.
- Qual delas ?
- Esse Ornellaia 2004, por exemplo?
- Ah, delegado. Tá guardado, né?
O Demétrio anotou alguma coisa, concentrado.
- Ô indivíduo, vc trata o doutor com respeito, viu, já acabo com a moleza que tô te dando... – dei uma engrossada.
- Deixa, Virmond – o Demétrio pegou no meu braço – tá tranquilo.
- E essa caixa de Vega Sicília Valbueña 2002?
- Também adeguei. É tudo Magnum.
Eu estava boiando. Mas o Demétrio pareceu ter um pequeno chilique.
- Magnum? Rapaz! – ele pareceu animado. Anotou mais alguma coisa. – Samuca, quando prenderam o Mordecai aqui, ele tinha documentos?
- Tinha sim, doutor.
- Tinha passaporte?
- Humm... parece que sim.
- Veja lá e me traz, se tiver.
O escrivão saiu da sala.
- Que porra é essa, Demétrio? Pode ir me falando! – intimei.
- Calma, Virmond. Tá tudo bem, deixa comigo.
Fiquei olhando a bigodeira branca do Demétrio, cobrindo o lábio superior, descendo pelas laterais da boca. Parecia o Rui Barbosa.
- Tá aqui – o Samuca voltou, deu o passaporte pro Demétrio.
Ele ficou uns segundos folhando o documento.
- Espanha, Itália, França, Portugal... um cara velho-mundista, certo?
- É a sequência natural das coisas, não doutor?
Doutor. O meliante já estava pegando intimidade, perdendo a formalidade.
Demétrio não se abalou.
- É, pode ser. Agora, este Mouton aqui, 2000, Jeroboam... é picardia sua, não?
Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra. Picardia. Fiquei até me perguntando se tinha ouvido.
- Não, doutor, não é não...
- E aonde diacho você ia achar isso?
- Ah, doutor, essa foi realmente difícil. Um industrial argentino, casa em Punta.
- Porra, você tá precisando é da Interpol! O que a gente vai fazer com um cara desse naipe, Virmond?
– Demétrio me olhou, claramente ainda se divertindo com a coisa.
- Sei lá, Demétrio. Quanto valem esses mutôn, nêga cecília, esses nomes todos aí?
O tal Mordecai deu risada.
- Tá rindo do que, vagabundo? – levei a mão no revólver e levantei.
- Calma, Virmond. O cara é da leve. – Demétrio interviu, rindo mais que o ladrão.
Mordecai tinha parado de rir imediatamente, mas nem me olhava mais. O negócio dele era com o Demétrio já tinham se afinado.
- Agora, uma coisa tá me intrigando – Demétrio falou – aqui tá dizendo que te pegaram roubando aqui no Brasil, num supermercado... é isso mesmo?
O larápio enrubesceu. Baixou a cabeça.
- Foi sim senhor, doutor Demétrio.
- Mas o que tu tava roubando aqui, infeliz, e em supermercado?
Silêncio total.
- Fala, Mordecai – Demétrio fez uma inesperada cara de esperançoso.
- Não me lembro, doutor.
- Samuca, me traz aquele pacote que está com as coisas dele – Demétrio falou pro escrivão.
Voltou com uma sacola de supermercado, esticada, uma garrafa dentro.
Demétrio colocou em cima da mesa, enfiou a mão dentro. Tirou uma garrafa bonita, um rótulo com um rabo de pavão, um desenho meio dourado.
- Cara, tu é um doente mesmo... – Demétrio ficou meio indignado – o que você vai fazer com esse Salton Talento? Guarda? Degustação às cegas? – Demétrio caçoava, tripudiava a olhos vistos...
- Boeuf bourguignone...
Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)