segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Vovó Francesca - Por Elmo Dias

Vovó Francesca - Por Elmo Dias
Férias de inverno.

Nos anos 80, os carros e as pessoas eram cafonas. Mas minha vó Francesca não.

As aulas acabavam, eu ficava numa ansiedade louca. Ficava todo dia perguntando pro meu pai que dia ia nos levar pra casa da vó.

Vovó Francesca poderia facilmente ser a dona Benta, lhe faltavam talvez uns 40 quilos pra isso, mas na minha mente ela tinha bochechinhas rosadas, coque e óculos redondos.

No espelho, contudo, rosto vincado, nariz de imperador romano, olhos pequenos de felino.

Arrastava os érres como se fossem jotas, italianice empedernida.

Praguejava quando o cachorro virava o lixo, quando a chuva vinha de repente com as roupas no varal, e quando a gente metia o dedo no que ela estava cozinhando.

Eu tinha a prerrogativa deliciosa e ao mesmo tempo árdua de ser o neto mais velho.
O mais velho pode mais, bate mais, fala mais, mas ao mesmo tempo responde por tudo.

Disso minha vó tirou uma conclusão pra lá de polêmica: ela podia, já aos meus 10 anos de idade, me dar vinho.

Ela tinha um cálice de vidro grosso, com losangos minúsculos na base do bojo, a haste sextavada e o pé redondo.

Eu era fascinado por aquela tacinha pequena, já fosca, única na cristaleira.
Minha vó sempre dizia que era de Murano, na Itália, mas meu avô gritava sempre ao fundo, indignado: “BUGIA!!”

Ela ria, divertida.

Marcante era saber que a questão do vinho era só nossa.

Era repentino.

Lá estava ela, depois de ter sovado muito com os dedos nodosos uma massa de focaccia, esperando que dourasse no forno à lenha.

A focaccia então, depois de um tempo, saía do forno pelando.

Ela colocava na mesa de madeira, fazendo com que a cera sem brilho da madeira suasse ao redor do disco de massa.

O cheiro me tirava pra dançar, e ela já estava, alegrete que só, buscando o cálice e o gaRafão (com só mesmo um érre na dicção), pra derramar ali o vinho tosco, escuro, cheiro de uva madura.

Servia o vinho enquanto rasgava um pedaço da focaccia, soprava fingidamente e me dava, esperando pra me ver ficar jogando o pão quente de uma mão pra outra e depois ainda tentar comer sapecando a língua e o céu da boca.

“Quente, quente!” – eu exclamava, como se não tivesse livre arbítrio pra colocar a massa fumegante na mesa e esperar esfriar.

E alguém consegue?

Enquanto ria só com os olhos, a boca sempre sisuda, já tinha colocado meio copo d´água e completado com vinho, pra eu esfriar a situação.

“Bebe, Ciccioto” – ela se aprazia, reconhecendo a quadrilha de insolentes que a gente havia formado. Adorava cada segundo da transgressão feminista e deseducadora que cometia.

Eu tomava um gole tímido, nariz enfiado na borda do copo, e me sentia o rei das Astúrias. Era o momento em que ser o neto mais velho era meu luxo, minha opulência emocional, bebendo vinho aos dez anos.

Depois, contava pros primos e irmãos, como se tivesse abatido o Minotauro com um estilingue.

Eles me invejavam e tentavam me destruir, contando pros outros adultos.

Vovó Francesca então bradava, irada, inabalável: “Mentira é pecado!!”

Eu, sentado em algum lugar, apenas portava minha auréola, olhos de candura, com apoio político quase imbatível, desdenhando a posição da criançada mais nova.

Era pra lá de bom ser o neto mais velho.

Vovó Francesca não viveu pra ver a Malbec virar pandemia, e nem pra ver o Casillero del Diablo ser vendido em Paris.

Mas eu sobrevivi pra derramar um pouco de Guigal naquela taça de vidro grosso, e reverenciar o coração que pulsa em cada cálice de vinho bebida com quem se ama.

Salute!