Uma Última Tacinha - por Elmo Dias
A vida toda tinha sido assim.
Não me surpreendia que, depois de quase um ano, eu encontrasse aquele envelope no bolso do meu sobretudo mais velho e marcado.
Um envelope de papel cartão, curto, retangular, rude.
Na face do envelope, a letra marcada, feia e direta de meu pai.
Sempre fora assim, a vida dele havia sido assim.
Sem rodeios, mas sempre com conteúdo.
Era início da noite, lusco-fusco no céu do sul, janela aberta, vento gelado no rosto. Tremi.
A adrenalina, a culpa, o remorso sem nexo, tudo me invadiu.
Sentei no baú dos cobertores, no pé da cama.
Vagarosamente, sem pressa, sem coragem, peito pressionado, puxei a folha de papel de dentro do envelope.
As letras fundas e pequenas sussurraram a voz tão conhecida.
“Filho, com as botas sujas daquela terra salpicada de pedrinhas brancas, só pude me lembrar de você. O único do meu sangue que suportou minha falsa verve de conhecedor. Te deixo um litro e meio da tua paixão. Te amo. Seu pai, Paolo.”
No verso da folha, um desenho de traço infantil, apontando o terceiro degrau da escada da casa onde eu havia crescido.
Jantei com os olhos fixos e com a ansiedade embrulhada dentro do estômago.
Os sons da minha casa, mulher, filha, televisão, devagar foram morrendo.
A noite comeu a cidade, e tudo o que se ouvia era o som da chuva nas folhas da palmeira do jardim.
Duas da manhã, liguei o carro e fiquei estático, sozinho dentro dele, durante minutos a fio, me enfrentando, pensando se eu já era homem pra aquilo tudo.
O vidro embaçava, o pulso pulava.
Deixei que a infância empurrasse o acelerador.
Depois de alguns quilômetros vendo as luzes da cidade perderem a forma no vidro molhado, desci do carro, enfiei o rosto nas golas do sobretudo me protegendo do frio e caminhei pela calçada rachada da casa velha.
A chave rodou no tambor da fechadura, a porta gemeu, acendi a luz solitária.
Revelaram-se os contornos e a herança afetiva do moleque.
Sentei no terceiro degrau da escada, a tábua pesada de madeira escura.
A única parafusada.
Fucei as gavetas da despensa, achei a chave de fenda com o cabo já bem gasto.
Desparafusei a madeira com tanto e ao mesmo tão pouco esforço, tentando entender se o rangido era da madeira ou da minha alma.
Puxei o degrau, encarou-me uma caixa de metal velha, poeira lhe dando a cor.
Eu havia me fascinado a vida toda com rótulos, safras, produtores.
História do vinho, ícones, harmonizações.
Leilões, encontros, ostentações.
Naquele momento, contudo, a única estampa que queria ver na garrafa era o sorriso debochado de meu pai, mais uma vez.
O velho sarcasmo, o amor enrustido.
O abraço tímido, o beijo raro, os olhos crus, como nenhum outro par de olhos.
Passei a mão pelo pescoço, pra desfazer o nó dentro dele.
Meus cabelos grisalhos estapeavam minha consciência, me gritando que nenhum gole de qualquer vinho valia o que eu queria de novo.
Nenhuma safra, nenhuma garrafa, nenhum vinhedo cobria o preço.
Mãos sujas de pó, ergui a garrafa, limpei com a manga do sobretudo.
O vidro escuro trazia uma peça de papel rústico, sem desenhos, sem marca, quase sem personalidade.
No pé do rótulo, contudo, letras de tinta escura, até borrada em alguns trechos. A frase sentenciava o fato, a compra no dia do meu aniversário.
“February fifteen, 1992, direct from the oak. Opus One Winery.”
Coloquei a garrafa no colo, olhei as paredes e a tinta puída que se segurava nelas.
Vi o gurizito correndo pela casa, sempre aos gritos da mãe, pedindo cuidado com a cristaleira, os vasos, os quadros, os espelhos.
Na saleta, na poltrona marrom, meu pai sempre acarinhava os próprios pés no tapete persa horroroso, lendo seu livro, taça ao lado.
Os filhos alvoroçavam os cômodos, ruidosos, até que o pai pigarreava ao fundo.
O momento onde a bagunça congelava.
Nunca, nunca deixe o pai levantar da poltrona.
Olhei para a mesa de jantar. A fotografia do cenário dos domingos, onde ele sentava na ponta.
Nós já adultos, minha mãe servindo seu ragú com polenta.
Só duas taças de cristal na mesa, minha e dele.
“O populacho que beba em vidro” – ele sempre dizia, e sempre se divertia, sob protestos das mulheres.
Me olhou tantas vezes, a barba branca começando a ressurgir depois do barbear da manhã, olhos já um pouco baços, tirando sarro das minhas notícias do Priorato, do renascer da Argentina, dos Pinots da Nova Zelândia.
Enfiava a colher na polenta com ragú, enchia a boca e me falava ainda mastigando que vinho bom de verdade amarrava a boca.
Lembrei do Fábio Júnior pedindo pro pai sentar que o jantar estava na mesa.
Lembrei de como ele já velho saiu pra chorar sozinho quando viu minha filha no vidro da maternidade.
Lembrei do primeiro dourado que pesquei na vida, o moleque gritando ao lado dele.
Lembrei dele emburrado depois que o Brasil perdeu em 1982.
Lembrei, lembrei, lembrei...
Fiquei ali, segurando aquela garrafa, tentando imagina-lo, ele que não falava meia palavra em inglês, negociando aquela garrafa na vinícola.
Limpei o pescoço molhado das lágrimas na gola da camisa, coloquei o degrau de volta, voltei pra casa.
No outro dia, pedi pra minha esposa um ragú com polenta no domingo.
Chamei todo mundo.
Comida pronta, mesa posta e cheia, minha mulher trouxe o ragú borbulhando na panela de ferro da minha mãe.
Peguei a magnum, coloquei sobre a mesa.
Olhei meus irmãos, abri a garrafa, sorri amargurado, servi a todos.
Servi também a taça de cristal pra cadeira vazia na ponta da mesa.
Minha filhinha, vendo o vinho servido, ergueu seu copinho de guaraná e repetiu as palavras de tantos e tantos domingos:
“U pupulaxo que beba in vido”.
Bebemos.
Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)