quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Um Gole no Mar - por Elmo Dias


Um Gole no Mar - por Elmo Dias

Acordei muito cedo, com aquela sensação de suplício e de injustiça que só acordar com muito sono pode trazer.

Já deveria estar acostumado, pois o pescador é um tolo auto-punitivo, um masoquista, por assim dizer, já que escolhe como passatempo algo que sempre se faz de mãos sujas, acompanhado de mosquitos ou de sol causticante, e que tem um resultado quase incerto.

A tralha estava arrumada, a máquina de fotografia a postos, mas dessa vez eu levava umas coisas diferentes: uma faca de sashimi, uma pinça de aço, uma mistura pronta de shoyu, raiz forte e gengibre picada e uma garrafa de Terrunyo Sauvignon Blanc 2007.
Ao chegar na praia, fiquei olhando os barcos mal pintados, de cores vivas e velhas, o vento frio de Guaratuba maltratando minhas canelas.

Seu João Galinha, caiçara de sombrancelhas espessas e cheios de pelos no nariz, trazia a traineira de madeira em direção da praia, pra como sempre jogar a proa em cima da areia pra gente subir.

“Bom dia, só três hoje?” - ele perguntou, olhos negros, afundados no couro curtido pelo sal e pelo sol.

“Só, mas quem insiste é que tem sorte!” - eu tentei rir, o cheiro frio da maresia me tomando as ventas.

Subimos com dificuldade no barco, a madeira inchada, as poitas de ferro cobertas de ferrugem marrom, as redes enfiadas sem ordem embaixo da amurada de escolher camarão.
César e Marcos, meus companheiros de madruguice, sentaram e começaram a tentar arrumar suas varas para fundeio, enquanto o motor de centro enchia nossos ouvidos com seu bater de pistões e nossos narizes com o cheiro de diesel.

A baleeira de nove metros moveu-se como que pedindo licença às dezenas de barcos dorminhocos na entrada da baía de Guaratuba, e prumou o mar aberto, passando pela barra e pelos bancos de areia.

Sempre quis pensar no seu João Galinha como o Lobo Larsen da literatura, mas suas camisetas apertadas na barriga proeminente e dura e seus chinelos de dedo lhe tiravam qualquer mérito para ser chamado Velho Lobo do Mar.

Coloquei o vinho dentro do isopor , e fiquei lembrando das críticas do Patrício Tapia rasgando elogios ao Sauvignon, ao mesmo tempo que tirava o vinho de sua nobreza, o colocando pra conhecer a vida real, ao lado da garrafa térmica desgastada de café do pescador, alaranjada e feia.

Por ali, siris secos, escamas avulsas e linhas de pescar velhas.

Era um desrespeito divertido ao ótimo vinho, mas tudo aquilo ainda dependia do peixe, fosse ele qual fosse.

Equipamento pronto, desci a linha na popa do barco, e deixei a isca artificial de barbela comprida e corpo fusiforme negro penetrar a flor da água.

Dei uns trinta metros de linha, e travei a manivela da carretilha, fazendo com que a ponta da vara envergasse pelo mergulho que a isca fez ao longe, descendo na coluna de água.

O sol nascia nas minhas costas, o vento salgado esfriava minhas orelhas, e eu, estranhamente, nem queria pegar nada relevante naquela hora.

Me sentia pescando em função de uma garrafa de vinho, uma sensação curiosa e desconfortável, quase uma vigilância sem autor.

Vinte minutos depois, o soco.

A ponta da vara dobrou-se para baixo, gritei para o caiçara colocar na lenta.
A linha começou a espremer-se pra fora da carretilha, usando seu freio.

No corrico, a pegada do peixe quase sempre parece que a garatéia colidiu com algo, e não que algo a pegou.

Mas depois você começa a recolher, usando sua força e a velocidade do barco, em marcha lenta, tem a deliciosa sensação de que algo vivo está na ponta da linha.

O coração sempre se manifesta, em taquicardia ansiosa.

Curvei-me algumas vezes, recolhendo a linha enquanto trazia o peixe com o movimento do corpo e da vara, me lembrando que tudo nessa era da humanidade parece ser técnica aplicada.

Bom aluno, depois de uns minutos pude ver as costas pretas da cavala, o corpo longo e roliço, tentando livrar-se da isca.

Subiu do fundo, agitou-se, correu entre os reflexos de luz fraca na água verde, e por fim veio ao barco.

Rimos, comemorando, com as zombarias naturalmente rudes de pescadores amadores, e joguei o belo peixe no gelo.

Sentei-me na madeira da amurada, e fiquei olhando os olhos grandes e os dentes afiados e numerosos na boca do bicho.

Os dentes dos peixes sempre me fascinaram, desde menino olhava os peixes assados e ficava roçando os dedos em sua dentição.

De qualquer modo, era cedo demais, e a cavala não servia para o que eu queria.
O barco continuou compenetrado em nos levar mais longe, estourando pelo cano de escape seus rebombos barulhentos, até que seu João Galinha diminuiu a marcha, enquanto olhava para terra dos dois lados que a víamos, no ângulo de noventa graus que as praias de Guaratuba e Caiobá faziam.

Muito antes do GPS, os pescadores artesanais cruzavam visualmente elementos que podem visualizar para encontrar os pesqueiros.

Nosso guia achou o ponto, desligou o motor e jogou a âncora.

Fiquei observando os nós que fazia com a corda peluda da poita, depois a corda se esticando, a madeira do barco toda estalando, como que se alongando.

A sensação é sempre de que a corda vai estourar ou o barco vai desmontar.

Paramos sobre o casqueiro, um local onde a lama do fundo está coberta por pedras pequenas.

Espetamos nossos camarões mortos no anzol e descemos as linhas.

A chumbada bate no fundo, você dá uma volta da manivela, deixa a linha tensa e espera o “choquinho“.

Todo pescador é um moleque sonhador, que tem a nítida sensação de que um peixe de duzentos quilos está de boca aberta no fundo, e que sua linha vai cair direto na goela do bicho, e, na primeira tentativa do dia, algo grandioso vai acontecer.

Coisas realmente acontecem, mas só se ouve contar e nunca se presencia.

Ficamos ali, naquele silêncio compenetrado, esperando o tremelique para a fisgada.

Caí em absorção de pensamentos, e olhei para o rosto redondo do caiçara, que desenrolava uma linha de mão grossa como uma corda de raquete.

Seu João Galinha, há mais de vinte anos no mar, um dia me confessara que não sabia nadar.

Nem nunca tentara.

Ele conhecia a condição do tempo que amanheceria pelas estrelas e pelas nuvens, sabia truques para pegar todo tipo de peixe, podia contar histórias magnéticas sobre peixes centenários e gigantescos, mas não sabia nadar.

Depois de algum tempo, os peixes apareceram.

Esparsos, pequenos e médios, divertidos, fujões, inconstantes.

O sol fez seu trabalho, esquentou nossos bonés e avermelhou nossa pele, mas nada do peixe que eu queria.

Robalos, pescadas amarelas, linguados, atuns, nenhum desses se pegava ali.

Comecei a questionar meu plano com o Terrunyo.

Mais ou menos quando eu pensava em decidir por tomar o Sauvignon sem peixe, um cardume de betaras nos acolheu.

Como se diz na pescaria, não dava tempo.

A isca não chegava ao fundo, era tragada em corrida antes que a linha esticasse com o peso da chumbada.

Pique de peixe.

O frenesi trazia duas, três betaras de cada vez.

Como de costume, eu devolvia praticamente todas, exceto as que me pareciam parrudinhas.

Em dez minutos, as quatro linhas na água já haviam recolhido umas 50 betaras, e soltado, mediante impropérios exigentes que eu fazia, umas outras 50.

Quando o ritmo diminuiu, a adrenalina foi baixando, os espaçosde tempo entre as mordidas ficando maiores.

Eu estava já pensando em mudar de pesqueiro, quando uma pancada me deu um leve susto na linha.

Fisguei e comecei a brigar com o peixe.

A carretilha zunia preguiçosa, a linha corria sem tanta velocidade, mas aquilo não era uma betara como as que estavam no cardume.

Quatro ou cinco minutos depois, o corpo verde do baiacu-arara mostrou-se ao sol.

“É um jalefa de um baiacu!”- gritou seu João Galinha - “não vai perder o bicho!”
O peixe brigou mais um pouco, o recolhi com o passaguá.

O papo de um branco creme muito suave inchou muito, ficou do tamanho de uma bola de futebol de salão.

Os dentes maciços, que lhe fazem parecer ter um sorriso de coelho, não haviam conseguido cortar a linha.

“Vai querer?” - perguntou seu Joao Galinha, nitidamente interessado no peixe - “isso é a melhor carne que tem”.

O bicho devia pesar uns 3 quilos. Peguei minha faca pra cortar o couro, mas vi que não iria conseguir nada com uma faca de sashimi.

“Você sabe limpar baiacu?” - me perguntou o pescador - “se estourar a bolsa de veneno perde a carne toda”
Como um garoto contrariado, dei o peixe pra ele.

Degolou o baiacu, com uma faca velha de pouco fio, e depois tirou orgulhoso a bolsa preta das tripas do bicho.

“Tá aqui o veneno” - ele exibiu o saquinho escuro, enquanto terminava de transformar o peixe num bloco sólido de carne branquíssima.

“Vai levar assim?” - me passou o filé.

“Não, vamos comer agora..!”

Me olhou desconfiado.

Peguei a tábuazinha de madeira que tinha trazido, firmei na superfície da proa, e fiz as fatias mais finas que pude.

A carne parecia pulsar.

Joguei as fatias no gelo de um isopor pequeno e limpo que havia trazido, e então coloquei a mistura de shoyu, raiz forte e gengibre num tupperware.

Busquei o vinho, tirei a rolha com meu canivete.

“Marcos, César, larguem essas varas, quero que experimentem isso”.

Peguei umas taças de vidro grosso que tinha trazido, derramei o vinho de amarelo sutil nas taças.

Dei uma pra cada um, incluindo seu João Galinha.

“Gosta de vinho?” - perguntei.

“É doce?”

“Experimente”

Fez uma careta com a acidez.

Tirei as fatias de baiacu do gelo, mergulhei no molho.

Coloquei tudo sobre a tampa do motor e disse que se servissem.

Cheirei o vinho, frutas cítricas, algo vegetal.

Olhei para o fim do mar, marzão espelhado, o horizonte abotoando céu e mar, um azul macio.

Um silêncio absoluto, o ar tão puro que chegava a afogar a respiração.

Dei um gole cheio, deixei a Sauvignon bem fria inundar a boca.

Olhei para o seu João Galinha, e brindei, rindo.

Ele levantou a taça, junto com os outros.

“E isso é pra beber com baiacu?” - ele perguntou, rindo, sarreando…

“Ô se é, ô se é…” - eu respondi, espetando uma fatia da carne tenra, viva e temperada, mastigando-a com certa luxúria, pra depois deixar o vinho fresco cobrir minha língua com toda a autoridade do terroir e da uva.

Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

3 comentários:

Roberto Fontaneda disse...

Elmo, mais uma bela crônica, Parabéns !!! Adicionei link do seu blog ao meu blog, se puder dê uma passadinha lá pra conhecer.

Abs

Roberto

www.tudosac.blogspot.com

André Brik disse...

Excelente narrativa! Estou começando a desamarelar desta probabilidade...

Aguardo vocês na Barra!

Fernando Mancebo disse...

Também gosto de escrever como você. Realmente fiquei imaginando essa verdadeira odisséia, é pena que não pude participar, mas só a fantasia e a imaginação, já nos fazem nos inserir na história, com certeza são coisas que não ficam esquecidas, ainda mais quando são prazerosas. Quando puder visite meu blog. www.entomologiaeoutrascoisas.blogspot.com