segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Homem que Roubava Vinhos - por Elmo Dias


O Homem que Roubava Vinhos - por Elmo Dias

Não eram nem onze horas da manhã quando colocaram o sujeito sentado na minha frente.

Bem apessoado, barba recém feita, perfume masculino daqueles antigos rescendendo na sala.

Normalmente de cara já sei que tipo de vagabundo é, mas não consegui sacar aquele sujeito no primeiro momento.

Me trouxeram o auto de prisão em flagrante. Li a descrição do crime, achei até engraçado.

- Ladrão de vinhos, então? – olhei nos olhos do homem, olhos azuis num rosto moreno.

Muito incomodado, tremia um pouco. Não falou nada.

- Olha, faz tempo que eu sou delegado, mas confesso que não tinha ainda prendido um cara especializado em vinhos. Tem os caras do rolex, tem os caras que roubam notebook e depois pedem resgate, tem até os caras especializados em Louis Vuitton, mas vinhos...

O escrivão entrou na sala, sentou no computador pra começar a digitar o depoimento.

- Qual a idade dele? – perguntei pro escrivão.

- Quarenta e dois anos, doutor.

- Natural de Curitiba mesmo?

- Não, aqui no RG diz que nasceu em Itaqui, Rio Grande do Sul.

Peguei a ficha de novo. Mordecai.

Nome de crente.- Me conta lá, Mordecai. Como te pegaram?

Me olhou angustiado, contraiu os músculos da face pra falar. Recuou, engolindo o que ia dizer.

- Olha, se você não falar nada vai piorar as coisas.

Não era bandido. Bandido eu conheço, tem os olhos de cachorro traiçoeiro. Puxa teu saco ou se humilha, ou então tá acostumado com a coisa toda, e daí só espera a hora de assinar o depoimento.

- Não falo mais isso pra ninguém, até porque o cinema já tratou de deixar isso dito, mas você tem direito a um advogado. Quer fazer uma ligação?

Testa franzida, espremeu a boca com força e disse que não.

- O que é um “mutôn” ? – perguntei, lendo o B.O.

Seu rosto tomou um pouco mais de cor.

- Um vinho francês, delegado.

Me tratava pela função. Se dava ao respeito.

- Samuca, liga pro Demétrio. – falei pro escrivão – pergunta se ele pode vir aqui.

O escrivão saiu, foi ligar pro Demétrio, um colega da escola de polícia, bebedor de vinho, gastador, metido a grã fino.

Uns vinte minutos depois, Demétrio entrou pela porta. Paletó xadrez, gravata borboleta, cachimbo na mão.

- Demétrio, apaga esse pito que vai ficar todo mundo fedendo aqui!

Levantei e dei um abraço nele.

Pegou o cachimbo de madeira escura e bateu no cinzeiro.

- Virmond, esse caso é pra mim mesmo... - falou dando uma risada marota.

Sentou na cadeira que ficava na ponta da mesa, pegou o auto de prisão, puxou os óculos pra cima do nariz e começou a ler com os olhos brilhando, instigado.

- O que você fez com essas garrafas, seu Mordecai?

O homem devolveu a pergunta baixinho.

- Qual delas ?

- Esse Ornellaia 2004, por exemplo?

- Ah, delegado. Tá guardado, né?

O Demétrio anotou alguma coisa, concentrado.

- Ô indivíduo, vc trata o doutor com respeito, viu, já acabo com a moleza que tô te dando... – dei uma engrossada.

- Deixa, Virmond – o Demétrio pegou no meu braço – tá tranquilo.

- E essa caixa de Vega Sicília Valbueña 2002?

- Também adeguei. É tudo Magnum.

Eu estava boiando. Mas o Demétrio pareceu ter um pequeno chilique.

- Magnum? Rapaz! – ele pareceu animado. Anotou mais alguma coisa. – Samuca, quando prenderam o Mordecai aqui, ele tinha documentos?

- Tinha sim, doutor.

- Tinha passaporte?

- Humm... parece que sim.

- Veja lá e me traz, se tiver.

O escrivão saiu da sala.

- Que porra é essa, Demétrio? Pode ir me falando! – intimei.

- Calma, Virmond. Tá tudo bem, deixa comigo.

Fiquei olhando a bigodeira branca do Demétrio, cobrindo o lábio superior, descendo pelas laterais da boca. Parecia o Rui Barbosa.

- Tá aqui – o Samuca voltou, deu o passaporte pro Demétrio.

Ele ficou uns segundos folhando o documento.

- Espanha, Itália, França, Portugal... um cara velho-mundista, certo?

- É a sequência natural das coisas, não doutor?

Doutor. O meliante já estava pegando intimidade, perdendo a formalidade.

Demétrio não se abalou.

- É, pode ser. Agora, este Mouton aqui, 2000, Jeroboam... é picardia sua, não?

Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra. Picardia. Fiquei até me perguntando se tinha ouvido.

- Não, doutor, não é não...

- E aonde diacho você ia achar isso?

- Ah, doutor, essa foi realmente difícil. Um industrial argentino, casa em Punta.

- Porra, você tá precisando é da Interpol! O que a gente vai fazer com um cara desse naipe, Virmond?

– Demétrio me olhou, claramente ainda se divertindo com a coisa.

- Sei lá, Demétrio. Quanto valem esses mutôn, nêga cecília, esses nomes todos aí?

O tal Mordecai deu risada.

- Tá rindo do que, vagabundo? – levei a mão no revólver e levantei.

- Calma, Virmond. O cara é da leve. – Demétrio interviu, rindo mais que o ladrão.

Mordecai tinha parado de rir imediatamente, mas nem me olhava mais. O negócio dele era com o Demétrio já tinham se afinado.

- Agora, uma coisa tá me intrigando – Demétrio falou – aqui tá dizendo que te pegaram roubando aqui no Brasil, num supermercado... é isso mesmo?

O larápio enrubesceu. Baixou a cabeça.

- Foi sim senhor, doutor Demétrio.

- Mas o que tu tava roubando aqui, infeliz, e em supermercado?

Silêncio total.

- Fala, Mordecai – Demétrio fez uma inesperada cara de esperançoso.

- Não me lembro, doutor.

- Samuca, me traz aquele pacote que está com as coisas dele – Demétrio falou pro escrivão.

Voltou com uma sacola de supermercado, esticada, uma garrafa dentro.

Demétrio colocou em cima da mesa, enfiou a mão dentro. Tirou uma garrafa bonita, um rótulo com um rabo de pavão, um desenho meio dourado.

- Cara, tu é um doente mesmo... – Demétrio ficou meio indignado – o que você vai fazer com esse Salton Talento? Guarda? Degustação às cegas? – Demétrio caçoava, tripudiava a olhos vistos...

- Boeuf bourguignone...

Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

11 comentários:

Zainer Araujo disse...

huahuauha ! Fantastica história !

Anônimo disse...

Pois é...texto divertido mesmo...
não fosse o rastro de preconceito que deixa no ar.
No Brasil não fazemos Super Toscanos nem Grand Crus de Bordeaux. Afinal, somos Brasil, Novo Mundo, um futuro pela frente e não uma história cheia de erros e acertos de 2 mil anos.
Aliás, no Brasil os grandes gourmets sabem que só se faz comida boa com vinho bom e também sabemos que, infelizmente, os 'grandes ladrões' podem levar o que quiserem desde que seja 'chique' não?
Triste no final das contas todo esse preconceito com o vinho brasileiro, que cresce a olhos vistos, mesmo que sejam olhos que já viajaram por taças internacionais.

Anônimo disse...

Aliás, o post acima é meu e quero assinar, pois se o autor resolceu dar nome aos vinhos, eu também dou meu nome, Sílvia, jornalista e sommeliere.

André Logaldi disse...

Não acredito que se trate de preconceito. O verdadeiro preconceituoso, no lugar do Elmo, talvez nem citasse um nome de vinho nacional. Por que uma receita tradicional francesa deveria levar um vinho que não fosse borgonhês? Talvez os grandes esnobes nem sequer saibam que a Salton faz vinhos. Aliás, já vi isso! Não vejo nada de pejorativo no fato dele escolher um nacional para protagonizar esta crônica e creio que ele o substituiria por qualquer rótulo. Do ponto de vista sociológico, criar uma "classificação" é uma forma de segregação. Assim, no quesito preconceito racial eu vejo com maus olhos tanto aquele que separa e rejeita um negro, quanto aquele que o abraça de modo leviano, antes para "mostrar", às vezes para um interlocutor imaginário, que gosta e respeita a raça; eu sempre tratei meus amigos como se não tivessem sexo ou cor e só falo sobre isso quando vejo alguém criar caso com um preconceito que não existe, de fato. Quem gosta de vinhos com profundidade não se apega a nenhum rótulo ou proveniência como bandeira, mas os escolhe somente de acordo com o desejo do momento. Daqui a pouco vamoso acabar criando um "sistema de cotas" para os nacionais em cartas de vinhos! Isso é risível, sim. Uma comparação absurda que eu tenho de deixar aqui porque não vejo a necessidade de se presumir que o Elmo esteja ofendendo um grande representante do nosso mundo do vinho.Veja por analogia, que grandes músicos costumam ter um "vocabulário" vasto que passeia com desenvoltura por qualquer estilo de boa música. Os que levam o estandarte de estilos, das duas uma: ou o fazem por estarem sendo profissionais (exigência de mercado e não vontade própria)ou por limitação técnica. E tenho certeza de que dentro do "vocabulário enofílico" de Elmo há espaço para os vinhos nacionais. Definitivamente cavalo não tem chifre, a não ser em debates retóricos dos quais me abstenho.

O Tanino disse...

Amigos,

confesso que no momento que li o comentário da Silvia, que se diz jornalista e sommeliere, fiquei sem palavras para fazer qualquer comentário.

Particularmente acho que se nem um autor de crônicas amador não puder mais ter a liberdade de utilizar as palavras da maneira que achar melhor porque vamos ficar procurando "preconceitos no ar", então vamos inicialmente acabar com as novelas.

Só para exemplificar:
Vamos supor que um personagem "novelesco" é uma prostituta que vive no bairro Y da cidade.

Pronto! Todas as mulheres desse bairro vão se sentir ofendidas dizendo que o autor supostamente quis deixar nas entrelinhas que todas as mulheres desse bairro são prostitutas.

E sabemos muito bem que isso nao acontece.

E o mais curioso de tudo, se trocássemos o tal vinho nacional por um outro, um Cheval des Andes (só como exemplo e pra não entrar no velho mundo) pergunto agora, o texto faria o mesmo sentido para os leitores?

Anônimo disse...

Senhores, antes de mais nada agradeço pelas respostas educadas e me desculpo por ter levantado uma polêmica.
No entanto, acredito que o que sai da boca é o que vai no coração e certos preconceitos estão mais arraigados do que nós, que abraçamos a todos sem fazer diferença de raça e sexo (muito bem lembrado Sr. Logaldi), somos capazes de perceber.
Preconceito - de qualquer tipo - só se combate com conhecimento e humildade.
Assim como vocês sou apreciadora de uma boa crônica e não houve sarcasmo de minha parte ao dizer que o texto era bom, mas poderia ser colocado um nome qualquer que não desmerecesse( e aqui não vai nenhum ufanismo) a nossa vinicultura que tem feito muito para galgar a montanha altíssima do respeito e confiança das pessoas de seu próprio país.
Concordo também com o autor do blog quando afirma que o 'Cheval de los Andes' talvez não fosse reconhecido por tantas pessoas, mas a licença literária (ou poética), por mais democrática e libertária que seja, termina quando corremos o risco de ofender outras pessoas. Afinal, este não é um folhetim novelesco, escrito com o propósito de ser ficção e entreter públicos no horário 'nobre' da TV. A maior parte dos leitores de blogs costuma entender que o que lê é notícia e é verdade. Essa diferenciação que parece fácil aos autores, para os leitores nem sempre é.
Há 20 anos sou jornalista e vejo como uma informação que, aparentemente é inofensiva, pode ser tranformada em algo muito grave por conta de experiências e pontos de vista muito distintos e também por conta de palavras mal colocadas.
Não há necessidade de cotas, acredito eu, em nenhum lugar neste país, desde que exista educação de qualidade para todos, serviços públicos de saúde acessíveis e equipados, lazer diverso (esporte, teatro, cinema etc.), moradia e a possibilidade de um futuro promissor. É o que todos desejamos e pelo que lutamos.
Não tenho e nem nunca tive a intenção de transformar este espaço em discussão política pois acredito que o prazer de desfrutar de um vinho bom e bem feito (qualquer que seja sua procedência) é uma das poucas coisas que nos alivia a carga de pressão e injustiça à qual estamos cotidianamente submetidos neste país. Ainda assim, acredito que palavras têm poder e devem ser tratadas com o respeito devido para não influenciar negativamente àqueles que são susceptíveis à elas.E infelizmente uma enorme parte de nossa população (e inclusive daqueles que se interessam por vinhos) ainda é.
Mais uma vez agradeço a atenção e me desculpo pelo mal entendido. Não tenho intenção de prolongar esta discussão mais do que o necessário.
Desejando bons vinhos à todos!
Sílvia (a que 'se diz' jornalista e sommeliére).

André Logaldi disse...

Silvia, agora sua elegância pôs fim a qualquer polêmica...rs. Mas veja bem que esta reação em cadeia pode se precfipitar por coisas pequenas. Mas vejo também e acho que compreendi melhor agora, que sua preocupação é antes o efeito que uma frase pode exercer sobre mentes ainda em desenvolvimento. Afinal eu acho que já poderia ter percebido que no seu primeiro e-mail vc defendeu a posição mas sem justamente debandar para o ufanismo inconsequente. E agora ficou claríssimo que sua posição é a de evitar que algumas pessoas, não todas, tomem esta frase como uma assertiva no mínimo tangível, o que não é. Mas de qualquer forma, para não me alongar, o fato é que, como dizia Peynaud, para vinhos melhores devemos ter consumidores melhores. E de fato, as diferentes capacidades de peercepção dos textos variam demais, porque infelizmente não temos no país uma uniformidade social no sentido da soma de educação, caráter e até inteligência. E isso pode fazer com que textos inocentes se transformem em bandeiras fundamentalistas, sobretudo daqueles que por conhecerem pouco, abraçam-se a um ponto isolado. Entendo que sua reivindicação não é abraçar uma causa ufanista, mas somente não dar munição a quem não sabe usar uma arma ou talvez aqueles que desconheçam o poder de fogo das palavras, jornalista que és (diz ser e é...rs). Acho que isso é o eterno lado "maternal " da mulher, que se apavora com as consequencias antes mesmo que elas se concretizem.
Bem, por mim, ponto final. Você foi sincera e elegante! Creio que as arestas foram aparadas. Abraços a todos!

O Tanino disse...

Silvia,

Inicialmente voce nao precisa se desculpar por "criar" tal polêmica, pois o meu blog é um lugar onde as opiniões são aceitas e uma discussão equilibrada e educada (como esta) é sempre bem vinda.

Também concordo com o André quando ele disse: "Sua elegância pôs fim a qualquer polêmica" , ainda mais agora que você novamente com toda educação e classe nos mostrou quais são os seus pontos de vista com relação ao texto, de forma que voce imaginava fazer uma certa "prevenção" quanto a uma eventual depreciação do produto nacional caso o texto seja lido por algumas pessoas que não tenham um conhecimento real do assunto.

Da minha parte peço desculpas a voce pelo "que se diz jornalista..."
Confesso a voce que parti para essa abordagem um tanto agressiva porque voce postou o comentário como Anônimo, e como nós sabemos, a internet é um lugar onde todo mundo fala muita coisa sem se identificar e fica por isso mesmo.

Inclusive, o meu nome é Jean Rodrigo Vicente e meu e-mail está no blog, ficando à disposição para receber qualquer tipo de comentários a respeito do blog e de vinhos em geral.

Por mim o caso está resolvido sem nenhum ressentimento.

Um grande abraço

Jean
otanino01@gmail.com

Elmo disse...

Olá... sou o autor do texto. Jean e André já são camaradas de outras postagens, então, só pra esclarecer à Sílvia:
1 - Só pelo fato do texto ter gerado polêmica, já me sinto relevante.
2 - O texto não é relevante e não expressa uma posição crítica ou uma opinião. É ficção, e os únicos responsáveis pelas opiniões são os próprios personagens. Ou seja, tanto a responsabilidade como a opinião também são ficções.
3 - Confesso que não me preocupo quando firo suscetibilidades. Só eu, que criei o texto e a trama, sei como isso nasceu. Assim, pode-se dizer que nesse caso se aplica o imperativo categórico, pois eu digo, e não posso ser contrariado, que a intenção foi meramente degustar a minha própria imaginação, pois mais pontual que ela seja.
4 - Só bebi um vinho nacional até hoje que gostei, o Merlot Terroir. Sequer bebi o Salton citado. Se o delegado quer desprezar o vinho nacional, é direito dele. Se o ladrão quer valoriza-lo como elemento tão essencial que um vinho é na receita francesa citada, é direito dele.
5 - Enfim, respeito que se leve tudo tão a sério, mas não compartilho o sofrimento que nasce dessa inflexibilidade.
6 - Rir de si mesmo pode ser ao mesmo tempo crítica construtiva e a virtude do desamparo renovador contido na humildade.

No mas.
Saludos verdaderos!
ELMO

Alexandra disse...

OI! MUITO BOM! EXCELENTE!!! BJS

Beda disse...

O texto é delicioso. Divertido, bem costurado, realmente gostei muito.

Quanto às polêmicas suscitadas:
a. Impressionante como vento frio gela cada um onde faltou o seu pano, não é?

b. Advogado é advogado é advogado. O Elmo deve ser excelente profissional: são já dois anos sem que ninguém tenha questionado a defesa!