quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A Última Safra - por Elmo Dias

A Última Safra - por Elmo Dias

Espedito descobriu que estava morrendo.

Não estava morrendo como todos nós, que a cada dia vivendo conta um dia morrendo.

Estava morrendo mesmo, rápido, daqui a pouco, insustentável leveza do ser.

Seu médico era o estereótipo do médico dos anos 60.

Um cara magro mas nada atlético, sempre asseado, cabelos brancos ainda volumosos, sempre arrumados, mesa limpa, óculos discretos.

A confiabilidade, o acolhimento e empatia do médico não ajudavam em nada agora.

Estava morrendo.

- “Mas... quanto tempo ?”

O médico, constrangido pela antiga quase-amizade, respondeu com a inexatidão inerente às carcaças humanas: “Dois meses, seis meses, um ano no máximo.”

Espedito nem se despediu da secretária, estava em transe.

O transe maldito, pesado, sombrio, onde todos os sons e imagens do momento presente parecem ser abafados por uma explosão que acabou de acontecer.

Sentou no carro e ficou esperando o choro.

Nada.

O choro também havia sido consumido pelo estarrecimento.

Sentou no banco do carro, abaixou a cabeça, ficou olhando para suas mãos.

A mesma cor, o dedo anular com a mesma cicatriz do tempo de exército, as mesmas unhas curtas e largas.

Baixou o pára-sol, ficou analisando no espelhinho suas rugas e suas pintas de maturidade na pele branca.

Não estava morrendo!

Estava tudo igual!

Os olhos ainda eram de um castanho sem graça, as sobrancelhas ainda não tinham fios brancos, o nariz largo e sólido.

Dirigiu até em casa, sem rádio e sem atenção.

Tentava organizar os pensamentos, tentava antecipar as conversas, tentava planejar seus últimos dias.

Seu mestrado em Mercados Emergentes já não servia pra mais nada.

Seu par de sapatos de pelica alemã já não valiam o preço.

Os trezentos mililitros de silicone que sua mulher colocara em cada seio já não eram estimulantes.

Resolveu não falar nada.

Entrou em casa, reuniu uma força hercúlea e até abriu um sorriso.

Ninguém desgrudou da tevê.

A mulher e os filhos comendo sanduíches com refrigerante e assistindo a novela indiana mal lhe disseram alô.

Ficou frustrado em desperdiçar seu sorriso falso.

Como estava no automático, ser semovente conduzido pela rotina, subiu, tirou a roupa no banheiro e jogou no chão.

Preparou o banho enquanto coçava suas partes íntimas.

Resolveu que ia cantar.

Cantar no chuveiro.

A água tépida envolveu sua pele, fluindo pelos cabelos e tomando o torso, enquanto tentava pensar no que cantar.

Desenterrou um samba velho, doído, que Nelson Gonçalves cantava com sua voz grandona.
No meio da canção, o choro veio.

Fundiu-se com a água do banho, perdeu-se no ralo.

Estava morrendo.

Ficou parado ali, depois de ter desligado o chuveiro, chorando sem expressão facial.

Pensou nas viagens, nas risadas, nos porres, nas namoradas, nos empregos.

Já de pijama e chinelos, lembrou da parreira.

Desceu as escadas, acendeu as luzes do quintal, chegou perto dos arames onde a planta se agarrava e mostrava suas folhas quase lascivas.

Os pequenos bagos, duros, tão verdes que eram nervosos.

Pegou a plaquinha amarrada no pé da vinha de cinco anos.

Passou os dedos pelas letras cavadas da madeira.

“Chateau Espê”.

Mais uma vez, puniu-se por amar o nome idiota que tinha dado a seu vinho.

Vinte e cinco metros quadrados de vinha, num terreno de quatrocentos e poucos metros quadrados num bairro nobre de Curitiba.

Criticou-se por mais aquele de seus tantos projetos que não mudariam a história.
Nem a sua e nem a da humanidade.

Lamentou-se por todas a vezes que brochou, olhos congelados nas folhas largas da Bonarda.

Desceu à adega, pegou uma caneta e um pedaço de papel jornal.

Desgovernou-se a escrever coisas.

Coisas que deixava, coisas para pessoas, carinhos para pessoas, insultos para pessoas.

Pessoas que estavam na sua vida naquele momento, todas nítidas numa fotografia de grande formato.

Olhou para seus próprios pés, sobre os ladrilhos. Cortejou as vinte e seis garrafas de sua primeira safra, ali no canto.

Empilhadas com capricho, empoeiradas.

Fundos de garrafa com poeira, garrafas de sua própria colheita, uma glória inimaginável.

Mastigou suas pretensões, pretensões de garoto senil.

Dobrou o papel, enfiou no vão do pilar de tijolos crus.

Pegou uma das garrafas, subiu a escada, colocou na mesa de jantar.

Serviu na maior taça que tinha. Cheirou.

Uva indômita, uva desavergonhada, uva, só uva.

Deu um gole áspero.

A mornidão do suco de uva ralo lhe fez rir sem vontade.

A tevê explodindo em cores e luzes contra o móvel da bancada da cozinha.

A poeira nas mãos, o vinho na taça.

Guindou-se da cadeira, foi dormir no transe espremido, na consciência opressora da efemeridade.

Estava morrendo.

Agora só queria dormir com os olhos pesados pelo álcool insolente de seu Chateau Espê.

Amanhã continuaria a morrer.

Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

Um comentário:

Leonardo de Araújo disse...

Ola Elmo, Blz.
Estou trabalhando no Rio e morando em Niterói.
Estou gostando.

Achei interessante a crônica. Especialmente, o que me pareceu a definição de uma vida sem muita emoção: filhos e esposas grudados na "novela indiana", mestrado em Mercados Emergentes, sapatos de pelica e 300 ml nos peitos da mulher. Show de bola!!! hehehe
Tudo sem sentido ou propósito.
Vamos dar um descontão para o espedito. O cara gostava tanto de vinho que até plantou parreiras no quintal. Pena que foi em Curitiba e não em Mendonza ou nos arredores de Santiago. Daria um bonarda melhor, com certeza.
Minha esposa tem um blog de crônicas também.
Espero retomar o meu logo.

BOM OS ITALIANOS NA MISTRAL, HEIN?

Brindes
Leonardo
vivaovinho.blogspot.com