quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Muitos Domingos Depois - por Elmo Dias


Muitos Domingos Depois - por Elmo Dias

Firmino estava sentado na mesa apertada da copa, olhando sua mulher picar cheiro verde naquela tábua encardida e empenada, já patrimônio imprescindível e irritante da mesmice.

Mesmo sob protestos, conhecidos protestos, havia preparado uma caipirinha para si, e lia os classificados buscando um carro menos usado do que o seu, já bem usado.
Cacoete de domingo.

Eulália resmungou alguma coisa sobre a cunhada que tinha se separado, e Firmino ergueu os olhos apenas para não ignorar totalmente com o já automático “aham”.
De repente, encarou aquela bunda.

Ficou por uns segundos, submetido ao efeito dominó de suas emoções, olhando aquela bunda enorme apertada numa saia de tecido marrom, rumando da indiferença confortável até o estarrecimento.

Uma série torrencial de pensamentos se sobrepôs.

Deixou o jornal na mesa, largou o copo de caipirinha, enquanto parecia ouvir uma orquestra sinfônica executando, em fortíssimo, o ápice de uma ópera de Wagner.
Nunca havia caído em si daquele modo. Ficou ali, quase suspendeu a respiração, olhos vidrados.

Um insight feito por uma zarabatana com curare.

A bunda não se mexia muito. A tensão da saia, que punha à prova as suas próprias costuras, garantia certa firmeza.

Os quadris, contudo, tremelicavam um pouco, em contraponto à faca escorregando num vai e vem, desfiando a salsa e a cebolinha.

Firmino foi arremessado para a cena em que, depois do baile, ao lado da jaqueira no fundo do Clube Vera Cruz, havia pela primeira vez colocado as mãos na cintura de Eulália.

Ela de vestido tubinho, preto com branco, cabelo chanel, luvas de cetim, narizinho perfilado, o cheiro do pó de arroz e da água de colônia.

Puro viço sobressaltado, coraçãozinho de coelho.

Gestos rápidos, carótidas pulsando, o beijo que se fingiu ter sido roubado.
Trinta e quatro anos atrás, a bunda na sua frente era uma sentença de sua própria história.

Aquela bunda de outrora era nada mais que um belo e econômico estofo idealizado para sentar.

A bunda atual estava na mesma pessoa, mas agora dava a chance para Eulália sentar por três ou quatro dias sem sentir dor.

O derriére que estava na sua frente agora parecia uma poltrona embutida. Algo que garantia até que um tiro de AR 15 sequer provocasse sangramento.

O flashback lhe fez o calor correr a face, a caipirinha pareceu refluir na corrente sanguínea, querendo lhe sair pelos poros.

Sentiu uma louca necessidade de beber mais.

O vizinho ligou um rádio vagabundo e muito alto, que começou a tocar algum axé indecente.

Para horror de Firmino, o alho que começara a ser cortado agora pegou ritmo baiano, a bunda extra king size começou um rebolado discreto mas fatal, o que lhe horrorizou lhe fazendo quase fechar os olhos e gemer.

Gemeu mesmo, baixinho, enquanto levantava impulsivamente e ia até a sala, abrir o armariozinho branco que fizera embaixo da escada, e pegar uma garrafa do único vinho que tinha ali.

Guardado, às dúzias, um vinho sul africano que havia arrematado num leilão.
Odair, seu amigo que o levara ao leilão, ficou rindo muito depois que ele descobriu que eram sessenta garrafas de um vinho barato e sofrível.

Mas Firmino havia achado um motivo para tentar se refinar: pagou ao primo que era marceneiro para fazer a sua “adega”, embaixo da escada.

Pegou seu saca rolhas de supermercado, dilacerou a rolha, encheu três quartos de uma de suas taças de vidro grandalhonas e grosseiras.

Olhou para a cristaleira, o jogo desfalcado de copos lilazes e sua jarra de cristal, com motivos florais dourados.

A sopeira de porcelana chinesa com uns gatos feios, gatos que pareciam vesgos, gatos estrábicos que sempre lhe causaram um certo arrepio desgostoso.

Deu um gole enorme, quase engasgou.

O vinho quente, o álcool lhe subindo pelo nariz, babou um pouco na camisa amarela.
Lembrou do samba do Ary Barroso, das marchinhas do Lamartine Babo, e começou a rir sozinho.

Lembrou das micagens que fazia para Eulália enquanto dançavam Adoniran tocado pelos Demônios da Garoa.

O relógio de parede badalou meio dia, respirou fundo, tomou mais um gole sequioso, pegou a garrafa e voltou pra cozinha.

O axé, por bênçãos dos céus, havia parado.

Agora só ouvia o vizinho peludo e gordo cantando uma moda de viola antiga enquanto lavava o monza preto e fosco.

Evitou olhar a bunda.

Pegou novamente o jornal e enfiou o nariz nos classificados, sem qualquer capacidade de concentrar-se.

Quando Eulália falou alto, repetindo a pergunta de se ele havia acendido a churrasqueira, estava com os olhos fixos na seção de carros da Jaguar.

Respondeu que já ia fazer isso, e ao mesmo tempo riu de novo, agora frouxo, meio desconsolado.

Riu mais ainda quando fez foco com os olhos, e viu o preço de duzentos e cinquenta mil reais de um Jaguar usado num anúncio perdido em que seus olhos pousaram.

Abaixou o jornal, uma onda levemente ébria se espraiou por suas costelas.

Olhou para o pescoço e os ombros fofos da mulher, viu a correntinha de amarelo já envelhecido que havia lhe dado, pingente de golfinho.

Ela adorava golfinhos.

Eulália murmurou um trinado, afinada que era, com a voz de contralto. Dois pra lá dois pra cá, tentando até fazer as evoluções da Elis.

Cantarolou com leveza, num prazer tolinho de alegria aconchegante.

Virou, viu Firmino com a garrafa e a taça.

Imediatamente parou de cantar.

Firmino esperou a repreensão, esperou a implicância, a ralha.

Preparou-se para fazer sua conhecida cara de moleque insolente, não falar muito e prosseguir fazendo o que não devia.

Eulália olhou firme nos olhos dele, e para sua surpresa, voltou a cantar.

Quase solfejando, deu três passos movendo as enormes ancas na direção dele,.
Empurrou ele e sua cadeira pra trás, sentou no seu colo.

Pegou a taça, deu um belo gole e em seguida lhe beijou ao mesmo tempo mordendo sua orelha.

“Não tem vinho pra mim?”- perguntou, rindo, maciamente, entre a lascívia e a ternura maternal.

Firmino apertou a bunda enorme, beijou o pescoço de Eulália e depois lhe atacou com um beijo na boca, rindo e sentindo o calor do corpo maduro da mulher.

Wagner parou de tocar, Elis tomou o palco, e os dois cantaram juntos o refrão enquanto ele se levantava, dava um tapa estalado naquela bunda grande e ia até a sala buscar mais uma taça.

Sentiu uma culpa dura, pontuda, enquanto o tesão reverberava em seu corpo.
Foi desafinando até a cristaleira, a voz fanhosa. “eu hoje me embriagando, de whisky com guaraná…”

Sentiu-se etéreo, o calorão na nuca lhe fez esboçar um sorriso firme e satisfeito.
Voltou com a taça, e enquanto servia três quartos para Eulália, olhou de novo a bunda.

Trinta e quatro anos de boleros de João Bosco e um quadril tão grande quanto sua felicidade.

Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

Nenhum comentário: