quinta-feira, 13 de agosto de 2009

O Melhor Vinho do Mundo - por Elmo Dias

O Melhor Vinho do Mundo - por Elmo Dias

Um grande amigo meu tinha me dito, sem rodeios: “encontrei o melhor vinho do mundo na minha última viagem.”

Ao ouvir aquela frase, com toda a hipérbole que parecia inserida na afirmação, algo estalou dentro de mim.

Meu amigo, um enólogo profícuo, um enófilo de carreira longa e diversificada, um filósofo amador, merecia meu respeito e admiração.

O tal vinho tinha mesmo que ser o melhor do mundo.

Me deu o mapa e o nome do lugar. Era inevitável, eu teria que fazer uma longa viagem ao Uruguai.

A ansiedade não é um privilégio dos pequenos e tímidos, ou dos inseguros e perdidos.

A possibilidade de colocar na boca o grande néctar deste planetinha me fez ter uma dorzinha de barriga intermitente durante os dias de preparo da viagem e especialmente durante a viagem em si.

Cruzei diagonalmente o sul do Brasil, cumprindo 1300 quilômetros entre Curitiba e Santana do Livramento, no Rio Grande do Sul.

A estrada, seus botecos, seus buracos, seus salames coloniais pendurados, o verde amarelado dos campos planos do fim do Brasil fizeram um belo papel pro meu material de nostalgia.

Mas era impossível esquecer o que eu estava indo fazer.

Uns minutos distraído, e logo a nuvem intrigante me cobria a cabeça.

Não sabia explicar direito se estava sendo movido pela vaidade de querer fincar minha bandeira pessoal num novo território, ou se queria dar um nome científico a algum primata exótico descoberto nas profundezas de uma enorme floresta de mata fechada.

Era algo assim, até meio espiritual, incompreensível para tantos incautos que não conhecem o vinho, sua história e seu encanto.

Nem valia a pena tentar justificar aquela maluquice, aquela viagem repentina no meio de um ano agitado. Sabia que havia gente no mundo que me entenderia, mas eu não tinha tempo de procurar as pessoas certas pra expor meu ponto de vista.

O melhor vinho do mundo. Tinha que ser já.

Atravessei a fronteira seca entre Livramento e Rivera, o sol do meio da tarde feria meus olhos quando comecei a ver as ruas do comércio da cidade uruguaia ficando pra trás.

A estrada foi se tornando um resto de asfalto antigo tentando cobrir a nudez da terra alaranjada.

Os campos eram planos e duros, casas velhas perdidas no meio de propriedades simplórias.

Cachorros magros, carros antigos, árvores enormes.

Quase uma hora depois, ali estava a marca da propriedade.

Um portão de madeira toda rachada, com ferrolhos escurecidos pelo tempo, com uma enorme letra F vazada nas duas folhas.

Parei o carro, desliguei o motor, abri a porta, o bafo do calor lambeu minhas costas.

Um cachorro preto muito grande, com o focinho branco da idade, me encarou sem interesse, deitado ao lado da casa de pedra que eu podia ver.

Um sino marrom pendia sobre o portão, agitei a corrente, o som fez uma porta se abrir na casa.

Enquanto o menino de cabelos claros vinha na minha direção, fiquei analisando as vinhas, uma longa fileira estreita de videiras muito grossas, que se estendia adentro da propriedade e descia num declive que não me permitia ver até onde chegariam.

“Hola” – me disse o menino, curioso. “Buenas tardes, que desea?”

Desfraldei meu portunhol e consegui a guia do moleque até a casa de pedra.

“Abuelo, este señor quiere vino.” – o muchachito falou rapidamente, e saiu correndo pro quintal.

Dei um passo respeitoso pra dentro daquela casa fria, notando que a pedra e a sombra pareciam fazer do ambiente interno um outro mundo.

“Buenas tardes, señor. Passe!” – me disse o velho, sentado numa mesa de madeira encerada, cheia de veios e nós à mostra.

“Senõr, un amigo estuve contigo en el mes pasado e me recomendó su vino...”

O velho se virou pra mim, mostrou a cabeleira vasta e muito branca.

“Sientate, amigo.”

Pegou uma pequena garrafa de barro e me serviu água fria num copo de vidro grosso e fosco.

Sentei no banco comprido, tomei um gole da água com gosto de argila.

“No hay vino para venderte”.

O velho levantou o rosto pra mim, e pude ver os olhos esbranquiçados mostrando sua cegueira.

O velho cego não tinha vinho... quase engasguei com a água, um calafrio de frustração permeou meu corpo e minha alma.

“Como te llamas ?” – me perguntou o homem.

“Elmo”

“Eres de Brasil, supongo.”

Respondi que sim. Estava meio inerte, sem saber que rumo tomar.

“Me llamo Franco. Un nome maldito...”

O velho levantou, pegou uma pequena vara reta de madeira retorcida.

“Venga, por favor”, me pediu.

Levantei e comecei a segui-lo sem questionar nada.

Atravessamos um pequeno patio, onde havia uma construção de pedra muito pequena, uma porta de ferro. Ele abriu a porta e um buraco escuro mostrou uma escada de madeira descendo inclinadamente.

“De donde vienes?” me perguntou, se apoiando num corrimão de ferro.

“De Brasil, Curitiba”

Descemos uns 4 ou 5 metros solo adentro.

Ele apalpou e achou uma chave, a torceu e acendeu uma fraca luz amarela.

Fiquei estático. Milhares de garrafas escuras, arrumadas com cuidado, se mostravam entre muita poeira e tantas teias de aranha.

Acima de cada pilha, uma pequena placa de madeira pendurada, com uma letra cursiva feia e clara, destacando um ano.

“Em que anõ nasciste?” – me perguntou o velho.

“1972”.

Ele andou vagarosamente tatelando o chão frio com seu cajado.

Ao chegar em 1968 parou um pouco fazendo uma conta mental. Deu mais dois passos e parou em frente às pilhas de 1970 até 1974, todas num nicho só na terra, lado a lado.

“Aqui, señor” – me estendeu uma garrafa coberta de pó. “Limpela”

Esfreguei a garrafa, esperando um rótulo sob a grossa camada de sujeita. Nada ali.

Ele andou até uma pequena mesa redonda, sob a luz amarela. Na mesa, duas taças de boca pra baixo, pequenas, de vidro grosso.

“Compartimos esta botella?” – me perguntou.

Me sentia mais obediente que o menino de cabelos claros lá fora.

“Claro que si...” – lhe respondi.

“Abrela, por favor” – me disse, buscando um velho saca rolhas na mesa e me alcançando.

Com todo o cuidado, enfiei o saca rolhas na garrafa, e puxei paulatinamente a rolha.

Saiu íntegra, apesar do meu receio.

“Son portuguesas” – me disse.

Pegou as taças, as virou de boca pra cima.

“ Te gusta mucho el vino?”

Respondi que sim.

“Y los asados?”

Afirmei que muito também.

“Siervelo, vamos probarlo”

Inclinei vagarosamente a garrafa de 37 anos de idade nas taças.

A luz quente e amarela batia no fluxo tímido do líquido.

Quase castanho, ainda bem translúcido.

Ao ouvir o fundo da garrafa bater na mesa, e velho ergueu os olhos embaçados e pareceu me olhar de verdade. Respirou fundo, escorregou a mão e tomou a taça pela haste.

“1972... un buen año.

Pausou um momento. “Tienes hijos?”

“Una chica”.

“Que edad?”

“Hará un año en unos dias”.

Sorriu. “No tengo viños tan nuevos...”

Cheirou o vinho. Acompanhei.

“Crees que un hombre puede dejar un trozito de si en cada botella que produz?”

Pensei longamente.

“Ciertamente...”

“Bebelo entonces”

O nariz era couro, terra e especiarias. Nada de explosões aromáticas.

Virei vagarosamente a taça, deixei cair na língua.

“Como se llama tu amigo que estuve aca?”

“Michel.” – falei, sentindo a língua recoberta de um líquido denso e muito gentil.

“Lo se... tambien de 1972...”

O vinho ficou caminhando na minha língua, como se dezenas de minúsculos pés brincassem de uma dança pitoresca em minhas papilas.

“Hay algunas botellas de 1972, como puedes ver. Mas botellas que personas que las quieran...”

Olhei para a pilha. Umas 200 garrafas ao menos do meu ano.

“Señor, te gusto el vino?”

Eu não sabia responder. A viagem, as vinhas, a adega, os olhos que não podiam ver... tudo rodava na minha cabeça.

Tomei mais um gole, me concentrei o máximo que pude. Era realmente ótimo.

“Si, señor, es excelente.”

“Toma algunas botellas para ti.”

Pedi o preço. Me negou a venda. Fui até a pilha, peguei duas garrafas. Perguntei se era muito.

“No señor, eres um hombre correcto. Dos esta bien.”

Me pediu pra sentar e beber o resto da garrafa com ele.

“Mira los anõs de 90 y despues.”

Olhei para as pilhas de 1990 em diante. Pouquíssimas garrafas.

Tomei coragem e perguntei como ele produzia os vinhos.

“Yo y el niñito.”

Uma senhora gritou algo de cima da escada. Desceu e nos encontrou nas banquetas.

Me sorriu, voltou pra cima, apareceu de novo com um pão cor de palha, redondo.

“Estaras conosco por esta noche?” - me perguntou.

O velho parou para me ouvir responder.

Disse que se pudesse pagar pelo pão, estaria.

Ela sorriu, e disse que iria começar a preparar o jantar.

“Hoy se paga por tudo, señor” – me disse o velho. “Quedate conosco esta noche, nos hablara de Curitiba e de tu vida en Brasil...”

No jantar, comemos o resto do pão com o resto da garrafa que abrimos.

A esposa nos trouxe uma bela sopa, grossa, com pedaços de carneiro dentro.

Pela manhã, passeei com o velho pelas vinhas rachadas, grossas, de poucas folhas e poucos brotos.

Ao meio dia, me despedi.

Com duas garrafas na bagagem.

Do vinho que, não sendo o melhor do mundo, era o melhor do mundo.


Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

3 comentários:

Emerson disse...

Realmente uma história que emociona....mas a pergunta que todos que estão lendo este post: Onde fica esta este lugar mágico? Abraços.

Unknown disse...

Elmo, isto é ficção?
No caso de ser realidade conte-me o lugar. Também sou de 1972 e pelo visto ainda restam 198 garrafas por lá... Parabéns pela história!

Fabrício Teno Braga
Araçatuba-SP
fteno@terra.com.br

Flávia Baxhix disse...

Olá Elmo... outra crônica, tão poética quanto a "Um Barca Velha Apaixonado"!
Quem dera o mundo pudesse contar com mais pessoas como esse distinto senhor de seu texto, que preza pelos seus valores e cultua a verdadeira magia do vinho!
Parabéns pela desenvoltura literária!