quarta-feira, 8 de julho de 2009

Um Barca Velha Apaixonado - por Elmo Dias


Um Barca Velha Apaixonado - por Elmo Dias


Nas minhas anotações, busquei apenas a confirmação.

Minha memória não me traíra.

A garrafa fora registrada com minha letra garranchosa, do mesmo modo que em minha mente: eu sabia a exata posição aonde ela descansava.

Passei os dedos no rótulo empoeirado do meu Barca Velha 1982, e coloquei-o em cima da mesa.

A solidão silenciosa daquele buraco na terra sob a minha casa combinava totalmente com a luz amarela, de certo modo débil, que pendia do teto de tijolos em cunha.

Abri a gaveta miúda e tirei um retalho de tweed inglês para limpar a garrafa.

Não sei até onde me acho ridículo em cerimoniais personalizados como este, mas eles acabam se tornando algo correndo no sangue... com o tempo, achava que já sabia parar de cria-los, mas era mentira.

Cada vez mais, eu e o vinho compartilhávamos uma promiscuidade quase sacra.

De qualquer modo, o tema, dessa vez, era muito mais intenso.

Os mantras calmantes do vinho e sua meditação haviam colidido com a adolescência ressurgida, um encontro inesperado.

Eu a reencontrara no corredor de um supermercado.
Enquanto decidia que marca de atum em lata comprava, ouvi uma voz que parecia familiar me chamar pelo nome.

E ali, depois de uns 15 anos, Isabella esmagou meu ego e pisoteou meu alter ego, com a maciez de sua voz grave e a irretocável beleza de seus cabelos tão escuros quanto a mais negra das amoras.

Limpando o Barca Velha, eu tinha meus olhos parados na cena pouco iluminada da minha adega fria, lembrando de quando ela havia tomado comigo um colegial depois do cinema.

A musa congelada no tempo, a diva eternizada na memória viva.

Sozinha na cidade agora, ela estava em um congresso.

Cirurgiã de cabeça e pescoço (sabe Deus o que isso significava), mas mesmo a tecnicidade da especialidade não lhe retirava o encanto... era uma mulher que representava uma genialidade de linhas do Criador.

“Vou imolar o Barca Velha em homenagem àquele colo” – o adolescente sentenciou, depois de marcado o jantar, ecoando no homem de rugas.

Ela amadurecera apenas. Eu, envelhecera.

Quando ela chegou ao restaurante, não resplandeceu ao som da Primavera de Vivaldi, como nos filmes de comédia nonsense americanos.

Mas, confesso, esquentou a boca do meu estômago, num brilho de ouro escovado.

Ao caminhar com um sorriso contido até a mesa, sonoplastia delirante por Nat King Cole, com direito a chiados de um velho bolachão de vinil.

Retirou o casaco de lã pura, que foi levado pelo garçom.

Aceitou a taça de Veuve Clicquot que estava no gelo.

Eu estava pagando tudo, a conta nada importava.

Vinte anos depois, a vida se revia, o mundo dava a volta e desintegrava o adolescente, revelava o homem.

Valia até o Barca Velha.

Um consomé com pães quentes.

Um Angélica Zapata Chardonnay.

Um papinho ameno sobre reminiscências.

Numa panela pesadíssima de ferro fundido, em seguida chegou o javali.

Ao demi-glace dos mais lentos e tradicionais.

Numa travessa separada, batatas, avelãs torradas e alho poró assado.

A chama de vela dançava com as sombras, que afagavam o pescoço dela, e ficavam clareando e escurecendo o decote.

Os sorrisos e os risos... referências ao passado, a delicadeza com que ela segurava a taça...

O maitre trouxe o decanter, taças bordeaux limpas.

Verteu o Barca Velha com reverência e cortesia.

Eu, ela e o javali olhávamos o vinho descer em sua escuridão sisuda ao cristal.

Em feitio de oração, soei o amém na mente, antes de inspirar todos os aromas que as terras difíceis do Douro exigiram da vinha.

Ela me seguiu, também ao tomar um gole cuidadoso.

Sorriu ao terminar, pegou o garfo e procedeu ao javali.

Tomei um instante refletindo sobre o caráter do Barca Velha, sem coragem de pegar no garfo, e não resisti:

“O que achou do vinho?”

“Gostoso, muito bom.”

“É o seu estilo?”

Ela levantou os olhos com gentileza, limpou o canto da boca de um pouquinho de molho.

“Humm... prefiro os tintos suaves, mas este até que é gostosinho”.

Nunca mais liguei pra ela.


Elmo Dias é advogado civilista, presidente da Afavep, pescador, tenista, enófilo e cronista nas horas vagas (bem vagas)

2 comentários:

Flávia Romano Baxhix disse...

Elmo
Parabéns pelo seu texto! Poesia, música e paixão, tudo composto numa só taça, num só desejo... o de encontrar algo que insinue despertar as nuances de beleza,e magia que o vinho nos proporciona... inviolável e eterno amor concentrados em seculares garrafas!

Elmo disse...

Muito gentil de sua parte, Flávia. A poesia entremeada no seu comentário também é muito agradável.